Este blog foi criado para fornecer as atualizações da obra Direito Sumular STF & STJ, que são periodicamente elaboradas pela autora na forma de artigos jurídicos publicados em diversas revistas e periódicos. Disponibilizaremos também outros trabalhos acadêmicos da autora, bem como matérias, notas e notícias.

Do Prefácio - Ministro Luiz Fux
Ministro do Supremo Tribunal Federal
Professor Titular de Direito Processual da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)



segunda-feira, 27 de abril de 2015

ATUALIZAÇÃO N. 11: Superação da Súmula 470 do STJ

A legitimidade ativa do Ministério Público para defender beneficiários do DPVAT: queda da Súmula 470 do STJ

Sumário: O que é o seguro DPVAT? 2. A jurisprudência fixada na Súmula 470 do STJ. 3. A superação da Súmula 470 do STJ. Conclusão. Notas. Referências.

Resumo: A Súmula 470/STJ afirma o seguinte: “O Ministério Público não tem legitimidade para pleitear, em ação civil pública, a indenização decorrente do DPVAT em benefício do segurado”. Esta Súmula restou superada em razão da nova orientação firmada pelo Plenário do STF no RE 631111 GO, julgado em setembro de 2014. Neste artigo, nos dedicaremos a esclarecer os fundamentos do novo entendimento do STFa respeito da matéria.

1. O QUE É O SEGURO DPVAT?

Criado na década de 70, o Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por veículos automotores de via terrestre (DPVAT) tem a finalidade de amparar as vítimas de acidentes de trânsito em todo o território nacional, não importando de quem seja a culpa dos acidentes. O seguro é útil em vários tipos de acidente e até pedestres têm direito a usá-lo. [1]

O DPVAT é um seguro de contratação obrigatória - por força da Lei 6.194/1974 - para toda a população que utiliza veículos automotores e vincula apenas a empresa de seguro e o segurado. Trata-se de uma relação de natureza particular e disponível, pois vincula apenas a empresa de seguro e o segurado. Tanto é assim que, na ocorrência de um sinistro, o beneficiário pode deixar de requerer a cobertura ou dela dispor como bem entender.

2. A JURISPRUDÊNCIA FIXADA NA SÚMULA 470 DO STJ.

A jurisprudência do STJ se firmou o entendimento de que o fato da contratação do seguro ser obrigatória e atingir a parte da população que se utiliza de veículos automotores não lhe confere a característica de indivisibilidade e indisponibilidade, nem sequer lhe atribui a condição de interesse de relevância social a ponto de torná-la defensável via da ação coletiva proposta pelo Ministério Público.

Em outras palavras, faltaria ao Ministério Público legitimidade para pleitear em juízo o recebimento pelos particulares contratantes do DPVAT de complementação de indenização na hipótese de ocorrência de sinistro, visto que se trataria de direitos individuais particulares e disponíveis, cuja defesa seria própria da advocacia.[2]

Este entendimento deu origem ao enunciado sumular n. 470 do STF em 2010. Verbis:

  • Súmula 470: O Ministério Público não tem legitimidade para pleitear, em ação civil pública, a indenização decorrente do DPVAT em benefício do segurado.

3. A SUPERAÇÃO DA SÚMULA 470 DO STJ

A Súmula 470 do STJ restou SUPERADA em virtude do entendimento firmado pelo Plenário do STF no RE 631111 GO, julgado em 6 e 7.8.2014. O caso concreto cuidava de seguradora que, por cerca de 20 anos, teria pago o prêmio do seguro DPVAT a menor, atingindo extenso grupo de pessoas. O Colegiado entendeu que, no caso em tela, a demanda referia-se a direitos individuais homogêneos – isto é, um conjunto de direitos subjetivos individuais, divisíveis, com titulares identificados ou identificáveis, assemelhados por um núcleo de homogeneidade.

Conforme explicou o eminente Ministro Teori Zavascki:

“O núcleo de homogeneidade dos direitos homogêneos é formado por três elementos das normas jurídicas concretas neles subjacentes: os relacionados com (a) a existência da obrigação (an debeatur = ser devido), (b) a natureza da prestação devida (quid debeatur = o que é devido) e (c) o sujeito passivo (quis debeat = quem deve) comum. A identidade do sujeito ativo (cui debeatur = a quem é devido) e a sua específica vinculação com a relação jurídica, inclusive no que diz respeito ao quantum debeatur (= quantidade devida), se for o caso, são elementos pertencentes a um domínio marginal, formado pelas partes diferenciadas e acidentais dos direitos homogêneos, a sua margem de heterogeneidade.”

A respeito dos direitos individuais homogêneos, o Ministro destacou seguinte:

“(...) os direitos individuais homogêneos são, simplesmente, direitos subjetivos individuais. A qualificação de homogêneos não altera nem pode desvirtuar essa sua natureza. O qualificativo é destinado a identificar um conjunto de direitos subjetivos individuais ligados entre si por uma relação de afinidade, de semelhança, de homogeneidade, o que propicia, embora não imponha, a defesa coletiva de todos eles. Para fins de tutela jurisdicional coletiva, não faz sentido, portanto, sua versão singular (um único direito homogêneo), já que a marca da homogeneidade supõe, necessariamente, uma relação de referência com outros direitos individuais assemelhados. Há, é certo, nessa compreensão, uma pluralidade de titulares, como ocorre nos direitos transindividuais; porém, diferentemente destes (que são indivisíveis e seus titulares são indeterminados), a pluralidade, nos direitos individuais homogêneos, não é somente dos sujeitos (que são indivíduos determinados ou pelo menos determináveis), mas também do objeto material, que é divisível e pode ser decomposto em unidades autônomas, com titularidade própria (e, por isso, suscetíveis também de tutela individual). Não se trata, pois, de uma nova espécie de direito material. Os direitos individuais homogêneos são, em verdade, aqueles mesmos direitos comuns ou afins de que trata o art. 46 do CPC (nomeadamente em seus incisos II e IV), cuja coletivização tem um sentido meramente instrumental, como estratégia para permitir sua mais efetiva tutela em juízo. (...) Quando se fala, pois, em “defesa coletiva” ou em “tutela coletiva” de direitos homogêneos, o que se está qualificando como coletivo não é o direito material tutelado, mas sim o modo de tutelá-lo, o instrumento de sua tutela.”

Os direitos individuais homogêneos podem ser tutelados em juízo pelo próprio titular individual. Não sendo ação promovida pelo próprio titular do direito, a legitimação para a ação coletiva há de ser autorizada em prescrição normativa específica (CPC, art. 6º).

O art. 129, III, da CF refere-se a “interesses difusos e coletivos”. Por sua vez, o art. 127 da CF atribui ao Ministério Público incumbência de defender “interesses sociais”. Confira:

  • CF/88. Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: ... III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.
  • CF/88. Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Neste cenário, surge a seguinte indagação: a circunstância de serem homogêneos, e, como tais, aptos a serem tutelados judicialmente em forma coletiva, seria razão suficiente para considerar os direitos individuais como “interesses sociais” e, assim, conferir ao Ministério Público legitimidade para defendê-los em juízo?

Inicialmente, é preciso destacar que há certos interesses individuais – de pessoas privadas ou de pessoas públicas – que, quando visualizados em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, têm a força de transcender a esfera de interesses puramente individuais e passar a representar, mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, verdadeiros interesses da comunidade em seu todo. É o que ocorre com os direitos individuais homogêneos.[3]

Nesses casos, considerando que a tutela dos direitos individuais é pressuposto para a tutela do interesse social subjacente, a legitimação do Ministério Público para defendê-los é inegável, independentemente de previsão normativa ordinária, pois que albergada no art. 127 do texto constitucional.

Dito de outro modo: a legitimidade do Ministério Público para tutelar em juízo direitos individuais homogêneos se configura porque a lesão a esses direitos compromete também interesses sociais, com assento no art. 127 da CF. Portanto, o próprio Ministério Público, independentemente de lei específica, pode, no exercício de suas funções institucionais, identificar situações em que a ofensa a direitos homogêneos compromete também interesses sociais.

Em suma, os direitos individuais homogêneos são suscetíveis de: a) tutela pelos próprios titulares, em ações individuais, ou b) de tutela coletiva, mediante ação civil coletiva, promovida em regime de substituição processual. Essa possibilidade de defesa de direitos individuais homogêneos por ação civil coletiva ocorre por razões de facilitação de acesso à justiça, pela priorização da eficiência e da economia processuais.[4]

Vale lembrar que as normas processuais e procedimentais que disciplinam a ação civil coletiva em defesa do consumidor (artigos 91 a 100 do CDC da Lei 8.078/90) aplicam-se, por analogia, no que couber, às demais hipóteses de tutela coletiva de direitos individuais homogêneos.[5]

Retomemos agora o caso concreto julgado pelo Plenário do STF por ocasião do julgamento do RE 631111 GO: tratava-se de seguradora que, por cerca de 20 anos, teria pago o prêmio do seguro DPVAT a menor, a atingir extenso grupo de pessoas que seriam, geralmente, hipossuficientes, razão pela qual o Colegiado entendeu haver interesse social a legitimar a atuação do Ministério Público.

Com efeito, o Plenário do STF firmou o entendimento de que a tutela dos direitos e interesses de beneficiários do seguro DPVAT , nos casos de indenização paga, pela seguradora, em valor inferior ao determinado no art. 3º da Lei 6.914/1974, reveste-se de natureza social (interesse social qualificado), de modo a conferir legitimidade ativa ao Ministério Público para defendê-los em juízo mediante ação civil coletiva, com base no art. 127 da Constituição.

CONCLUSÃO

Segundo o STF, o MP pode pleitear, em ACP, a indenização decorrente do DPVAT em benefício do segurado, pois trata-se de demanda referente a direitos individuais homogêneos.

Ora, esta legitimidade do MP para tutelar em juízo direitos individuais homogêneos se configura independe de previsão normativa ordinária, pois a lesão a tais direitos compromete também interesses sociais, com base no art. 127 da CF (que atribui ao MP a incumbência de defender “interesses sociais”).

A Súmula 470/STJ restou superada em razão dessa nova orientação do STF, que teve por base o seguinte caso concreto: Uma seguradora, por cerca de 20 anos, teria pago o prêmio do seguro DPVAT a menor, a atingir extenso grupo de pessoas que seriam, geralmente, hipossuficientes, razão pela qual o Colegiado entendeu haver interesse social a legitimar a atuação do MP.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Antônio Herman V. A insurreição da aldeia global contra o processo clássico. In MILARÉ, Édis (coord). Ação Civil Pública: Lei 7.347/85 – Reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. SP: RT, 1995, p. 96.


[1] Disponível em: <http://www.stj.jus.br> Acesso em 29/03/2013.

[2] Cf., nesse sentido, dentre outros, o Voto do Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, no REsp 858056 GO, 2ª Seção, DJe 04/08/2008.

[3] Cf., nessa linha, o Voto do Ministro TEORI ZAVASCKI no RE 631111 GO, Tribunal Pleno, DJe 30/10/2014

[4] Cf., nessa mesma linha, BENJAMIN afirma que os direitos homogêneos “são, por esta via exclusivamente pragmática, transformados em estruturas moleculares, não como fruto de uma indivisibilidade inerente ou natural (interesses e direitos públicos e difusos) ou da organização ou existência de uma relação jurídica-base (interesses coletivos stricto sensu), mas por razões de facilitação de acesso à justiça, pela priorização da eficiência e da economia processuais” (BENJAMIN, Antônio Herman V. A insurreição da aldeia global contra o processo clássico. In MILARÉ, Édis (coord). Ação Civil Pública: Lei 7.347/85 – Reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. SP: RT, 1995, p. 96 – Citado no Voto do Ministro Teori Zavascki no RE 631111 GO, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 6 e 7.8.2014.

[5] Cf. STJ - Voto do Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, no REsp 858056 GO, 2ª Seção, DJe 04/08/2008.

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