Este blog foi criado para fornecer as atualizações da obra Direito Sumular STF & STJ, que são periodicamente elaboradas pela autora na forma de artigos jurídicos publicados em diversas revistas e periódicos. Disponibilizaremos também outros trabalhos acadêmicos da autora, bem como matérias, notas e notícias.

Do Prefácio - Ministro Luiz Fux
Ministro do Supremo Tribunal Federal
Professor Titular de Direito Processual da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)



quinta-feira, 19 de março de 2015

ATUALIZAÇÃO N.1: Súmula 650 do STF atualizada


TERRAS INDÍGENAS: ENTENDA POR QUE A SÚMULA 650/STF NÃO SE APLICA NA HIPÓTESE DE RENITENTE ESBULHO
O presente artigo se destina a analisar o chamado “renitente esbulho” a fim de esclarecer por que, neste caso, não incide a Súmula 650/STF, publicada no dia 9 de outubro de 2003 com a seguinte redação:
  • Súmula 650/STF: Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto.
Resumo: Nossa pesquisa se inicia com o exame do conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” (art. 20, inc. XI da CF/88), noção de fundamental importância para a compreeensão do comando da Súmula 650 do STF. Para tanto, verificaremos o conteúdo do julgamento da Pet. 3.388 (DJe de 1/7/2010), onde o Plenário do STF assentou o marco temporal para o reconhecimento aos direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, bem como o marco da tradicionalidade da ocupação, que lhe é complementar. Após esses esclarecimentos iniciais, explicaremos o significado da expressão “renitente esbulho”, demonstrando por que, neste caso, não incide a Súmula 650/STF
Palavras-chaves: Terras indígenas, terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, marco temporal, marco da tradicionalidade da ocupação, renitente esbulho.
O Súmula 650 do STF menciona expressamente os incisos I e XI do art. 20 da CF/88. Verbis:
  • CF/88. Art. 20. São bens da União:
    I - os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos;
    (...)
    XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
Cumpre indagar: o que são as mencionadas “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”? Estariam albergadas nesse conceito as terras que foram, em tempos idos, ocupadas por indígenas?
O legislador da CF/88 trouxe a definição no § 1º do art. 231:
  • § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
No parágrafo seguinte, a CF/88 deixa explícita a necessidade de que a posse seja atual:
  • § 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
No RE 219.983, precedente da Súmula 650 do STF, o Min. Nelson Jobim destacou, em relação ao reconhecimento de terras indígenas, que:
“Há um dado fático necessário: estarem os índios na posse da área. É um dado efetivo em que se leva em conta o conceito objetivo de haver a posse. É preciso deixar claro, também, que a palavra ‘tradicionalmente’ não é posse imemorial, é a forma de possuir; não é a posse no sentido da comunidade branca, mas, sim, da comunidade indígena. Quer dizer, o conceito de posse é o conceito tradicional indígena, mas há um requisito fático e histórico da atualidade dessa posse, possuída de forma tradicional.”
Na mesma linha, o ilustre Prof. José Afonso da Silva assim expôs: [1]
“O tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos pelo qual se deslocam etc. Daí dizer-se que tudo se realiza segundo seus usos, costumes e tradições.”
Conclui-se, assim, que a palavra “tradicionalmente” (mencionada no XI do art. 20 da CF/88) não se refere a uma circunstância temporal, mas sim a uma forma de possuir as terras.
Veja-se que, nos termos da Súmula 650 do STF, as regras dos incisos I e XI do artigo 20 da CF/88 não abrangem terras que, em passado remoto, foram ocupadas por indígenas. Conclusão diversa implicaria, por exemplo, asseverar que a totalidade do Rio de Janeiro consubstancia terras da União, que seria um verdadeiro despropósito.[2]
A esta altura, cabe indagar: qual é o marco temporal para o reconhecimento aos índios dos “direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”?
Ao julgar a Pet 3.388 (DJe de 1/7/2010), o Plenário do STF assentou que o art. 231, § 1º, da CF/88 estabeleceu, como marco temporal para reconhecimento à demarcação como de natureza indígena de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, a data da promulgação da Carta Constitucional, ou seja, 5 de outubro de 1988. Assim, não se incluem no conceito de terras indígenas aquelas ocupadas por eles no passado e nem as que venham a ser ocupadas no futuro.[3]
Em complemento ao marco temporal, há o marco da tradicionalidade da ocupação. Vale dizer: não basta que a ocupação fundiária seja coincidente com o dia e o ano da promulgação, é preciso haver um tipo “qualificadamente tradicional de perdurabilidade da ocupação indígena, no sentido entre anímico e psíquico de que viver em determinadas terras é tanto pertencer a elas quanto elas pertencerem a eles, os índios.”[4]
Nota-se, com isso, que o segundo marco é complementar ao primeiro. Apenas se a terra estiver sendo ocupada por índios na data da promulgação da Constituição Federal é que se verifica a segunda questão, ou seja, a efetiva relação dos índios com a terra que ocupam. Ao contrário, se os índios não estiverem ocupando as terras na data de 5 de outubro de 1988, não é necessário aferir-se o segundo marco.[5]
Contudo, não se aplica esta regra na hipótese do chamado renitente esbulho. Vejamos. De acordo com o STF: “O renitente esbulho se caracteriza pelo efetivo conflito possessório, iniciado no passado e persistente até o marco demarcatório temporal da data da promulgação da Constituição de 1988, materializado por circunstâncias de fato ou por controvérsia possessória judicializada.” [6]
Conforme destacou o ilustre Ministro Teori Zavaski no ARE 803462 AgR MS, julgado em 09/12/2014: [7]
“Renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, a data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada.”
Numa palavra: se na data da promulgação da CF/88 os índios não estavam ocupando a terra, ainda assim esta pode ser considerada “terra tradicionalmente ocupada pelos índios”, desde que fique comprovado que eles foram esbulhados - ou seja, expulsos em razão de conflito possessório - , mas continuaram lutando pela área até o marco demarcatório temporal (data da promulgação da CF/88). Neste caso, caracteriza-se o esbulho renitente (insistente, persistente). [8]
Esta orientação tem origem no julgamento da PET 3388[9] - caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Naquela ocasião, considerou-se que, se em razão de renitente esbulho praticado por não índios, a terra não estava ocupada pelos índios na data da promulgação da CF/88, então não se desconfigura a tradicionalidade da ocupação. Nas palavras do ilustre Ministro Relator, Carlos Ayres Britto:
“A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das “fazendas” situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da ‘Raposa Serra do Sol’.”
Como se percebe, o Supremo Tribunal Federal considera que a aferição da tradicionalidade, a fim de se constatar a existência do direito indígena originário de posse sobre uma determinada gleba de terra, não está vinculada à presença física da comunidade na área, ressalvando expressamente que deve ser afastado o critério do chamado “marco temporal” nas hipóteses em que os indígenas tenham sido expulsos das terras por força de renitente esbulho praticado por não-índios.[10]
CONCLUSÃO
À luz do exposto, pudemos constatar que, segundo a jurisprudência do STF, as “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” de que trata o art. 20, XI da CF/88, são aquelas que: a) os índios habitavam na data da promulgação da CF/88 (marco temporal); e b) se caracterizam por uma tradicional ocupação, isto é, uma efetiva relação dos índios com a terra (marco da tradicionalidade da ocupação).
Como se vê, em regra, o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” abrange apenas aquelas que estavam sendo ocupadas em 05/10/1988, não alcançando as terras ocupadas por indígenas em passado remoto. Nesse sentido é o comando da Súmula 650 do STF: “Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”.
Entretanto, este verbete sumular não se aplica nas hipóteses em que fica configurado o renitente esbulho, pois neste caso a tradicionalidade da ocupação se mantém intacta. Vale dizer: se na data da promulgação da CF/88 os índios não estavam ocupando a terra, mas fica caracterizado que houve renitente esbulho, então considera-se presente a tradicionalidade da posse nativa e a área será considerada terra indígena para os fins do art. 231 da CF/88, não se aplicando a Súmula 650/STF.
 
Alice Saldanha Villar
Advogada e autora dos livros “Direito Sumular - STF” e Direito Sumular - STJ”, Editora JHMIZUNO, São Paulo, 2015 - Prefácio do Ministro Luiz Fux.


[1] Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Malheiros, 2002, p. 829-830.
[2] Cf. Voto do Ministro Marco Aurélio (Relator) no RE 219983 SP, Tribunal Pleno, DJ 17/09/1999.
[3] Cf. STF - Pet3.388, Rel. Min. Carlos Britto, DJe de 1º/7/2010; STF - ARE 803462 MS, Rel. Min. Teori Zavascki, Dje 13/08/2014.
[4] Cf. Voto Min. Ayres Britto, Pet. 3.388, Rel. Min. Carlos Britto, DJe de 1º/7/2010.
[5] Cf. Inteiro teori do ARE 803462 MS, Rel. Min. Teori Zavascki, Dje 13/08/2014.
[6] Cf. STF - ARE 803462 MS, Rel. Min. Teori Zavascki, Dje 13/08/2014 (Noticiado no Informativo 771 do STF).
[7] Cf. STF - ARE 803462 AgR MS, Rel. Min. Teori Zavaski, julgado em 09/12/2014. Noticiado no informativo n. 771 do STF.
[8] Vale destacar que, de outro lado, se os índios foram expulsos do local antes de entrar em vigor a CF/88 e desistiram de lutar, então não estará configurado o renitente esbulho.
[9] Cf. STF - Pet3.388, Rel. Min. Carlos Britto, DJe de 01/7/2010.
[10] Cf., na mesma linha: TRF 3, 1ª Seção, Embargos Infringentes n. 2001.60.00.003866-3/MS, Rel. Des. Federal Nelton dos Santos, DJ 06/07/2012.











































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